Escrever contra o fogo
Um diário pode ser insuportável se não estivermos dispostas a viver a nossa própria vida (a sentir, sonhar e às vezes nos desesperar)
Spoiler: ela queima o caderno. No final, ela simplesmente queima o caderno. É claramente um elogio da escrita, um que diz: nada mais sobreviveria se esse caderno continuasse inteiro, se eu continuasse a escrevê-lo, a tomá-lo como a um amante nos cantos da casa, trêmula. Tudo o mais queimaria. Tudo o mais queima, quando a gente escreve.
É perturbador — e já ouvi que é “coisa de menininha” (dito por quem não considera “menininha” grande coisa, dito por quem acredita na fantasia de menininha, por quem nunca viu um filme de terror com menininhas; ou por quem já foi uma menininha perturbada pelo próprio desconhecimento e desejo, sem entender ou entendendo bem demais o que é a violência, um sorriso raso no rosto, por dentro um filme de terror?).
Acho até que houve um tempo em que pudemos escrever (não publicar, calma aê) em diários porque eles eram considerados inofensivos. Não por quem os escrevia, veja bem, mas por quem não se incomodava em proibi-los. Publicamente, são coisa tola. Mas na intimidade, sempre foram e sempre serão prática erótica, mística, política, desde que possamos desconfiar da descrença, do “isso é bobeira”.
No fundo a gente sabe que está criando provas contra a gente mesma, quando escreve. E essas provas são ainda mais profundas se você escreve ficção. Sempre conto essa história: no primeiro clube de leitura do Desesterro fui de penetra, a Andrea del Fuego era a mediadora, me fizeram uma pergunta, eu toda empilhada em mim mesma respondi e me senti tão arreganhada que pedi desculpas, “acho que me expus demais”. A Andrea, gênia, e o sorriso doce e esperto dela, me disseram algo como: “fica tranquila porque dificilmente você vai conseguir se expor mais do que já se expôs aqui” (o meu livro na mão).
Mas é pior do que criar provas contra si mesma, é criar provas de quem você não é mais, porque escrever tira um pedaço, outro, vai te comendo por dentro, te transformando, e tudo bem, tudo bem até que você tem que responder por todas aquelas coisas que escreveu.
Escrever um diário é perturbador.
Tê-lo escrito é ainda pior.
Já ouvi muitas histórias sobre diários profanados; tenho as minhas, claro, que sempre inspiram ficção (envio por e-mail, é só me pedir). Inclusive, é algo que primeiro tento adivinhar, depois pergunto, quando encontro outra escritora pela primeira vez. Assim fui descobrindo que muitas de nós carregam a ferida que é ter sido lida ainda sangrando, fresca, que é ter sido invadida no meio das páginas, por curiosidade ou despeito. O desafio do diário é que para se ver é preciso se mostrar, e como confiar que quem vê (você inclusa) saberá honrar o que vê?
[Pule a fotografia se não quiser ler a última página do livro]
Minha avó materna escrevia em cadernos e diários. Minha vó foi uma autora — lida apenas por quem profanasse suas páginas. Por quem aproveitasse que ela estava ocupada e se metesse entre as suas palavras. Quando morreu, muito jovem, queimaram os cadernos dela e eu nunca os li. Nem mesmo à força eu pude lê-los. Ainda tento adivinhar o que ela escrevia, visões de um mundo todo seu? Cartas de amor? Listas de compras? Será que ela sentia a presença dele? Do que nos ensinaram a confundir com o diabo, nosso daemon, nosso parceiro criativo interno? Será que ele a desafiava como me desafia?
Mesmo nunca tendo lido o que ela escreveu, a escrita dela me influencia. Me lembra que é preciso escrever — contra o fogo.
Não que eu não entenda, eu entendo: a vontade que dá de fugir do desmoronamento constante da escrita é imensa, mas não é uma opção real. Podemos ruir com o desmoronamento ou contra ele. Escrever um diário é mesmo perturbador, eu sei. Tê-lo escrito é ainda pior, eu sei, eu sei. Mas os cadernos que não escrevemos são ainda mais perturbadores, muito mais, porque eles queimam dentro.
Comece, se ainda não começou. E continue, por favor. Escrevendo sempre, você aprende a se entregar na página, ela se torna sua amante. Você está nua, mas está viva. Uma hora você vai precisar decidir se queima os cadernos todos ou se os transforma em monumento, para si mesma e para os outros. Eu te convido a não queimar os seus cadernos. Destrua os cadernos, claro, mas não os queime. Destrua-os e os transforme em obra. Em arte. Não queime os cadernos. Não eles.
PS: o livro citado no começo é o Caderno proibido, da Alba de Céspedes. Recomendo com todo meu estômago revirado. Aqui parti do meu corpo depois da leitura e, claro, juntei com minhas próprias angústias e pesquisa-prática. Vou falar mais sobre essa pesquisa-prática com foco na escrita de diários como parte de um processo criativo — poético, selvagem, inspirado — em uma oficina livre, dia 18/01/24. Tem mais informações sobre ela aqui.
incrível como esse texto coube certinho no meu momento atual. ao invés de queimá-los, me deu ainda mais fogo para escrever mais. obrigada <3