Parir a própria voz em cada texto
Como eu lido com a dor (e busco o prazer) das primeiras palavras de um texto
Esses dias “comecei” um texto novo*, mas não é sobre ele que quero falar com vocês e sim sobre esse acontecimento, o começar a colocar um texto no papel.
Coloquei o comecei entre aspas porque na realidade o texto já vinha sendo gestado há algum tempo, claro, mas é algo que sempre vale a pena lembrar (sempre, por que há tanto no mundo dizendo o contrário): o processo criativo de um texto não começa no instante em que colocamos a primeira palavra no papel – ali ele brota, mas começar ele começou bem antes, enraizando, no escuro, no caldeirão da alma.
Um texto, como tudo o que é vivo, começa bem antes de nascer.
No papel, o texto recém-nascido chega ensanguentado, úmido, cheio de remendos e resmungos, não se parecendo ainda muito com o que pode se tornar. Ao menos não para quem vê de fora. Eu, que o conheço, que já dividi com ele o corpo, posso sentir o que ele já foi e o que sei que ele pode se tornar.
(Não se preocupe se você não tem essa relação com o seu texto, isso pode ser desenvolvido se você desejar).
Ok, até aqui estávamos falando do texto, mas e a gente que escreve? Como fica? Você já parou para prestar atenção em como você se sente nessa parte do processo? Você começa a colocar as palavras no papel, o texto começa a ganhar corpo e vem uma sensação de... luto? Impaciência, pressa? Na melhor das hipóteses, vêm junto com algum prazer, mas às vezes não, às vezes vem puro pesar, ansiedade, raiva até.
O luto também aparece como a sensação de que o texto diante de você parece pouco em relação ao texto que existia em suas expectativas; mesmo que você sinta orgulho, você também se decepciona. A pressa também aparece como a sensação de que você vai desperdiçar tempo; pra que começar a escrever se você não sabe se vai ter tempo/energia para terminar?
É lógico que se você começa a escrever e sente luto e sente pressa, talvez venha junto o instinto de fugir, de abandonar o texto logo depois do primeiro jorro, você diz para si mesma que “não tem esse tempo” (qual tempo? Você não sabe, mas sabe que não o tem); você quer fugir, você foge, semanas depois você encontra o que era o início de um texto e se tornou um espasmo, uma tentativa de vida, uma angústia.
Talvez você já tenha entendido minhas intenções aqui. Quero te convidar a não fugir, a seguir adiante (o que você quer está do outro lado). Eu, que já experimentei fugir, voltar, fugir. Nada se costura. Só a angústia. Mas calma, não vou dizer simplesmente “não fuja!” (risos nervosos, porque detesto essas coisas). Vou te mostrar um caminho possível e torcer para que faça sentido, ao menos em algum nível, para o seu próprio caminho.
Vem comigo. Primeiro, você precisa assumir que pode ser que você encontre o luto e a pressa no limiar do dentro para a folha. Não vamos atrás de tentar interpretá-los, ainda. Por exemplo, não pule da sensação de luto para a certeza de que você está se sentindo assim pois está decepcionada com o que escreveu (você ainda não é capaz de avaliar o que escreveu, muito provavelmente, pois o texto está muito fresco).
Não pule da sensação de pressa para a certeza de que você realmente não tem tempo e nem tem como arranjar tempo para a sua escrita, para a sua expressão artística, para a busca da sua alma. Colocando assim, até parece que você está dizendo que não quer se priorizar, certo? Por que você faria isso, se não fosse o medo? Então calma, fica com a pressa, não deixe que ela se transforme ainda em uma interpretação da pressa.
Para conseguir fazer isso (ficar com o luto, ficar com a pressa), você precisa conseguir não se assustar com essas sensações, por isso a primeira coisa é lembrar que você pode encontrá-las por essas redondezas, mais ainda: é muito provável que você as encontre, é bom que você as encontre, inclusive te convido a aprender a celebrá-las – sabe por quê?
Esse sentir, esse medo de não dar conta e essa vontade de fugir só atrapalham o seu processo quando você os interpreta como sinais de que é-melhor-sair-correndo-daqui. Na realidade, eles são como subprodutos da operação psíquica alquímica através do qual a ideia (simplificando) ganha corpo e vira texto, na página; em linguagem alquímica, estamos falando de uma mortificatio (morte, finalização) seguida de coagulatio (incorporação); os temas são saturninos (a morte, o tempo) porque estamos entrando no reino de Saturno, a matéria; os desafios são enormes porque os vivemos na jornada que Saturno tem para nós, uma jornada que ele conduz saturninamente.
O luto e a pressa já são interpretações, mas feitas instintivamente, pelo viés emocional. Por isso aqui o tomamos como linguagem, assim como podemos fazer com os sonhos: eles nos contam sobre o processo alquímico que sustenta a criação – se soubermos olhar.
É difícil sentir o tempo no corpo sem achar que é pressa. É difícil sentir a morte de algo sem querer fugir. Mas a morte é a vida-morte-vida, precisamos senti-la para sentir também a vida. E o tempo é o sangue correndo, o ritmo, o tempo não é uma maldição, ele é o que torna toda transformação possível.
No contexto criativo, precisamos aprender a celebrá-los.
Acho isso tão bonito, por isso quis compartilhar com vocês. Desde que entendi esse movimento, quando eu sinto o luto e sinto a pressa, não vem mais a raiva de estar me sabotando, a revolta, o “de novo isso? De novo me colocando nessa situação?”.
Ao invés da raiva, vem a alegria melancólica da compreensão de que “ah, então é assim que a gente sente, no corpo, quando está entrando no reino de Saturno, no reino da matéria”. Essa é a linguagem, o sinal, de que realmente tem algo nascendo desde dentro de mim e indo para a folha. Sem esse sinal, não houve nascimento, apenas (e talvez) repetição. E assim será em cada texto, incorporaremos de novo com as palavras, passaremos de novo por esse limiar doloroso e mágico que é movimento de parir a própria voz.
Então você lê esse texto, confia, e consegue não fugir. Continua ali, sentindo o luto, sentindo a pressa. Sabe o que acontece? Algo floresce. Um portal se abre. Sua voz sai por ele. Caminha um tanto mais. De portal a portal. O frio na barriga. A escrita.
Aos poucos, no decorrer dos seus processos, a dor irá dando lugar ao prazer. Para isso será preciso: 1) aprender a amar o tempo, a impermanência, a constante transformação de tudo que existe; 2) se apaixonar pela vida-morte-vida, pelos ciclos que tudo destroem e que tudo criam, aprender a ver beleza na beleza que há nisso.
Mas isso já é outro assunto.
*o capítulo “Passado e presente da escrita no seu corpo” do curso Caderno como jardim (que terá uma nova versão em breve).
que texto <3 que âncora pro coração
👏👏🌸